Desta vez, falarei sobre um assunto que envolve tradução, línguas russa, inglesa e portuguesa e, talvez, política. Afinal, onde não há política?
A intenção deste texto não é ser uma pesquisa de cunho acadêmico, mas sim falar de um assunto que pode ser do interesse de outros colegas, estudantes de idiomas e leitores de literatura russa ou apenas pessoas que se interessam por história e curiosidades gerais.
Fazendo algumas traduções, e também pesquisas para meu canal do YouTube (Russística), algumas vezes me deparei com a sigla “С.А.С.Ш.” (pronuncia-se como S.A.S.Cha), que significa “Estados Unidos da América do Norte”. Até aí, tudo bem, os Estados Unidos realmente fica na América do Norte, isso não me despertaria nenhum alerta se fosse escrito em português, inglês ou até mesmo em russo, mas por extenso. No entanto, estava escrito apenas as siglas “С.А.С.Ш.“, o que despertou o alerta automático, visto que é muito mais usado em russo a sigla “США“, assim, sem pontos entre as letras e que acostumamos a falar algo como “C-chá”. Claro, quando encontrei a sigla diferente para EUA, que inclusive havia um hífen na letra “A” (С.-А.С.Ш) indicando que era um adjetivo composto “Северо-Американские Соединенные Штаты“, que, traduzindo de maneira literal, ficaria algo como “Estados Unidos Norte-americanos”, utilizei o padrão “EUA” (Estados Unidos da América). E por quê? Devo dizer que “meus dedos coçaram” para utilizar a versão “Estados Unidos da América do Norte”, mas eu teria que escrevê-la por extenso, pois ficaria esquisito escrever “E.U.A.N” e depois ter que utilizar uma nota de rodapé. Além de já existir esta sigla para outra coisa, isso não era absolutamente relevante para o texto. Porém, como todo tradutor é, e deve ser, curioso por natureza, embarquei na pesquisa para saber o motivo pelo qual a URSS escrevia daquela maneira naquele e em alguns outros textos mais antigos. Logo de início, em uma busca simples no Yandex (o buscador da Rússia), vi uma resposta em que uma mulher dizia que aquela sigla se usava já na época anterior à Revolução Russa e assim manteve durante a URSS. Como a resposta carecia de fontes, parti para uma pesquisa de corpora em russo.
No site de pesquisa de corpora em língua russa (sim, porque tradutor não pode confiar apenas nas ferramentas de pesquisa; como dizia minha professora, Patrícia Gimenez: “O corpus não mente”), foram encontradas pouco mais de 140 ocorrências para “САСШ” e mais 19 para “С.А.С.Ш.” (Com pontos), constituídos de textos jornalísticos, artigos, diários ou cartas, excetuando apenas pouquíssimos textos literários, incluindo o texto de Vladímir Maiakóvski “Minha descoberta da América, escrito entre 1925 e 1926. Em um dado momento, Maiakóvski diz (tradução minha, do russo):
“…Quando se fala em “América”, nossa imaginação evoca a cidade de Nova Iorque, os tiozinhos americanos, mustangs, Coolidge e assim por diante; coisas pertencentes aos Estados Unidos da América do Norte. Estranho, mas verdadeiro. É estranho porque há três Américas: do Norte, Central e do Sul. Os E.U.A.N. [traduzido propositalmente de maneira literal] não ocupam sequer todo o Norte – veja só! – tiraram, apropriaram e incorporaram o nome de todas as Américas…”
Em outro momento (tradução minha, do russo):
“Que América e E.U.A.N. são a mesma coisa, todos sabem. Coolidge apenas formalizou esse negócio em um dos seus últimos decretos, chamando a si mesmos, e apenas a si mesmos, de americanos. O rugido de protesto de muitas dezenas de repúblicas e até de outros Estados Unidos (por exemplo, os Estados Unidos do México) que formam a América é em vão. A palavra ‘América’ está finalmente anexada.”
Neste texto de Maiakóvski, claramente ele demonstra sua desapreço com os EUA. No entanto, ele comete dois equívocos: o primeiro é culpar o presidente Coolidge de criar um decreto intitulando a si mesmos de americanos. O gentílico “americano” é empregado desde 4 de julho de 1776; o segundo equívoco foi nomear os EUA como “Estados Unidos da América do Norte” e em seguida, dizer “não ocupam sequer o Norte”. Maiakóvski pode culpar os EUA de “anexar” todas as três Américas ao seu nome ao se referir como “América”, mas quanto à América do Norte em seu nome oficial, ela “desanexou” o Norte ainda em 1778, conforme o texto a seguir (tradução minha, do inglês):
“Colônias Unidas” começou a aparecer nos “Diários do Congresso” em junho de 1775. Ao redigir a Declaração de Independência, Thomas Jefferson mudou “Colônias” para “Estados” para reconhecer a intenção da resolução. O Congresso flertou com “Os Estados Unidos da América do Norte” depois que os delegados adotaram os Artigos da Confederação. Os tratados com a França em 1778 referiam-se aos “Estados Unidos da América do Norte”. O Congresso usou esse nome em uma resolução envolvendo letras de câmbio com comissários na França em maio de 1778, mas os delegados abandonaram “Norte” em 11 de julho de 1778.”
Desta forma, por ‘ironia do destino” (como o famoso filme soviético), o Império Russo, mesmo após 1778, permaneceu chamando os EUA como “Estados Unidos da América do Norte” (САСШ., С.А.С.Ш., С.-А.С.Ш, СШСА) e isso permaneceu ainda nos tempos da URSS. Há indícios deste uso ainda em meados da década de 1930 e diminuindo sua ocorrência ao longo de todo o século XX. Porém, é espantoso, e até mesmo surpreendente, que ainda existam textos, sobretudo artigos jornalísticos e científicos, que ainda utilizam a antiga sigla. Ainda que seja do senso comum o uso da sigla “США” (relativo aos EUA ou USA em inglês).
Em uma vasta busca pela internet, vê-se que não há um consenso de quando e por que abandonaram a antiga sigla e aderiram à “nova”. Alguns dizem que é porque soa melhor ao falar (isso pode ser verdade, visto que a língua russa é cheia de siglas e acrônimos e posso comprovar que é mais fácil falar “c-chá”) ou que simplesmente aderiram ao congresso continental de 1778 (este pouco provável, devido ao atraso de alguns séculos).
Em suma, fica aqui a questão, ou talvez não seja uma questão, de como traduzir o nome dos EUA, seja a sigla, seja por extenso. Eu, como tradutor, prefiro aderir ao EUA ou USA (para o inglês), assim como por extenso. Desta forma, não corro o risco de ter como resultado um texto incompreensível ao leitor. Em literatura, talvez coubesse uma nota de rodapé com a explicação. Porém, isso pode ser completamente inútil, visto que não é uma questão de uso por política ou ideologia qualquer, foi apenas, talvez, por uma convenção ou falta de conhecimento.
E a conclusão?
A conclusão é de que um tradutor precisa ser curioso e nunca confiar na primeira informação que encontra em sua pesquisa. Todo esse texto é uma amostra do que passa um milhão de coisas na cabeça de um tradutor por conta de uma simples sigla. Desde o início, sabia que deveria utilizar a sigla EUA e por extenso “Estados Unidos da América”, mas a curiosidade me levou a essa extensa pesquisa (que levaram umas duas horas).
Ao menos, toda vez em que optar por “EUA” quando encontrar as diferentes opções incluindo o “Norte” no nome, terei embasamento e certeza da minha escolha.
Bem, assim são os dias de todos os tradutores, não é mesmo?